Cegueira

Nos últimos tempos tenho visto e lido críticas ferozes sobre o livro de José Saramago "Ensaio sobre a cegueira", e sobre o filme nele baseado "Blindness" de Fernando Meirelles. Entre outras coisas ouvi dizer que descrevia os cegos como uma espécie de monstros, sem princípios nem ética.

Vi inclusive manifestações de associações de cegos protestando contra o filme e o livro. Ora, parece-me que isto só pode ter como origem péssimas traduções ou muito más interpretações. Pelo menos do livro, uma vez que não vi o filme, embora o filme deva fazer uma interpretação muito próxima do que o autor sentiu ao escrever o livro, a ver pela reacção de Saramago ao ver a primeira projecção da fita.

Então, como pode uma história que retrata tão genialmente o quanto estamos dependentes da sociedade e o quão facilmente esta poderia entrar em colapso, ser visto como uma caricatura das pessoas cegas?

Parece-me que a grande maioria das pessoas que protestavam contra o filme, decerto nunca leram o livro, e talvez infelizmente nem o possam fazer por serem efectivamente cegas e não terem provavelmente acesso fácil à obra do escritor.

Para quem não percebeu, trata-se duma obra que retrata uma sociedade em colapso, vitima dos seus medos e da incapacidade de responder a um flagelo. Uma sociedade que em vez de proteger os que sofrem procura proteger-se a todo o custo aprisionando os doentes em medievais leprosarias para evitar o contágio, e que, não o conseguindo, mergulha no caos.

Não li em toda a obra nada que me fizesse pensar que os cegos se tornam piores pessoas pelo simples facto de o serem. Percebi apenas que quando nos deixamos vencer pelo medo somos capazes das maiores atrocidades para fugir do que nos aterroriza.

Aprendi também com os protestos, que quando nos deixamos levar por interpretações alheias e as tomamos como verdades absolutas, somos capazes de cair no ridículo. Talvez os que protestavam contra uma obra que não conhecem fossem duplamente cegos pois para além da doença de que padecem, sofrem também da mesma cegueira dos retratados na obra do genial autor, deixando-se levar por aqueles que, não conseguindo ver o que leram, bradam furiosamente contra quem lhes tenta mostrar algo diferente.

Para quem quiser tirar algum proveito do fime de Meirelles, é talvez preferível ler primeiro o livro, e, se tiverem dificuldades em perceber o que é uma metáfora, recomendo então algo mais antigo mas igualmente actual: "A alegoria da Caverna" de Platão.

Quem paga a crise?

Por estes dias, todos parecem estar muito interessados em duas coisas, quem foi o culpado da crise que vivemos, e como sair dela o mais depressa possível.

Se a primeira reflecte um pouco o nosso desejo de ver os culpados pagar pelos seus erros, o que no caso é altamente improvável uma vez que são tantos e tão poderosos, já a segunda reflecte o nosso espírito sonhador, e a confiança de que algum iluminado há-de encontrar a fórmula mágica que nos livre do papão.

É no entanto tão vã como a primeira, pois parece mais que certo que veio para ficar. O único remédio é tentar tirar o melhor partido possível das oportunidades que sempre surgem nestas alturas.
A meu ver, no entanto, a questão que mais deve preocupar é saber o que ficará depois da crise. E os riscos são mais que muitos. A imberbe consciência ambiental que começava a crescer nos últimos anos e dava alguma esperança de podermos reverter a catástrofe ambiental que aí vem, será agora a ser encarada como um luxo ruinoso em que poucos parecem atrever-se a apostar.

As tímidas iniciativas que os países mais poderosos começavam a ter no sentido de fazer do futuro do planeta um preocupação nacional, são, em tempo de aperto de cinto, algo que dificilmente dará votos.

Se as crises são como as marés, que tanto chegam sem que se possa fazer grande coisa para as evitar como hão-de inevitavelmente passar, ainda que não façamos grande coisa para isso, esta veio em altura particularmente má.

Não tenho propriamente dúvidas de que irá passar, o problema é saber se com os anos perdidos nesta trapalhada, que não tenham dúvidas vai durar alguns, ainda iremos a tempo de evitar a verdadeira crise que virá mais tarde, a ambiental.